Cacique Luiz Katu, em palestra na UFRN I Foto: Mirella Lopes |
O Cacique Luiz Katu nasceu e foi criado dentro do território Katu, localizado nos municípios de Canguaretama e Goianinha, sendo hoje o mais notório defensor dos direitos indígenas no Rio Grande do Norte. Sobrevivente do avanço do agronegócio sobre as áreas de aldeias, ele chegou a ser reprovado três vezes numa mesma série durante o exaustivo período em que dividia o dia entre a escola e o trabalho no corte de cana.
O episódio pode até parecer um contraste com o título de Professor Honoris Causa que vai receber da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) e com as palestras que vem realizando sobre as questões indígenas. Nessa última semana, por exemplo, o Cacique falou sobre o tema a um grupo de estudantes do Centro de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Porém, a desenvoltura e conhecimento de causa que demonstra hoje, são resultado de uma criação ligada às tradições que resistiu à opressão.
Cacique Luiz Katu, durante palestra na UFRN I Foto: Mirella Lopes |
Cacique Luiz Katu, durante palestra na UFRN I Foto: Mirella Lopes |
“Hoje eu uso todas as minhas forças para lutar para que nossa geração não seja massacrada. Lembro de todo esse processo de supressão que passamos e, para mim, isso é uma inspiração de luta. Todo o processo de educação indígena é possível desde que acreditemos que ele é possível. Eu fui uma pessoa que fui desacreditada”, lembra Katu.
Ao contar a própria história, o Cacique lembra de seus ancestrais, das lições aprendidas com os mais velhos e da liberdade de um povo que convivia com a natureza, sem precisar tomar posse dela.
“Eu era conhecido como Lula de Chão, que era o nome do meu pai, Seu Chão. Meu grupo familiar é formado pelas famílias que usam os sobrenomes Soares e Serafim, que sempre estiveram ligadas a esse território do aldeamento Igramació, onde hoje é a cidade de Vila Flor. Igramació era uma missão jesuíta. Mas, o grupo familiar da minha mãe, que é Potiguara, sempre foi de lá mesmo e minha avó ainda mora lá, na Comunidade Katu da Vila, que é como a gente chama os lugares por onde o rio Katu passa. Katu, na língua Tupi, significa bom”, explica o cacique, ao fim da palestra na UFRN.
O pai do Cacique Luiz Katu é do grupo dos Janduís, que habitaram o município de Goianinha.
“Seu Chão é do grupo que foi para esse refúgio, onde estavam alguns Potiguaras e Tapuias, formando uma resistência”, detalha Luiz Katu, que é o mais velho de sete irmãos, sendo seis homens e uma mulher.
“Seu Chão nunca deixou de falar dos mais velhos, dos nossos ancestrais, inclusive, tem uma tataravó nossa que tinha três buracos de venta e ela é muito comentada pelo nosso povo porque tinha um terceiro furo no nariz e conseguia assobiar por causa disso. Ela fechava a boca e soltava o ar só pelo nariz, aí fazia um som muito bonito. A gente queria imitar nossa tataravó com três buracos de venta, desde a minha infância ouvia essas histórias. Minha noção de respeitar a natureza veio do Conto dos Encantados, meu pai sempre me contou da importância da Iara, da Comadre Florzinha, como era importante respeitar as nascentes dos rios por causa do Batatão e Boi Tatá, sempre contou a história do haja Pau, que era para não mentir para os pais senão iria virar uma... essa nossa formação vem da base dos nossos povos originários que são os Potiguara. Isso nunca foi negado no meu grupo familiar”, ressalta o Cacique.
Cacique Luiz Katu é abordado após palestra na UFRN I Foto: Mirella Lopes |
As boas lembranças foram interrompidas com a chegada ao território do agronegócio da cana de açúcar.
“Na década de 1970 aquela região onde é a APA [Área de Proteção Ambiental] Piquiri Una hoje foi muito atacada. Canavieiros e fazendeiros vieram de vários cantos, se instalaram lá e começaram a destruir toda a floresta. Como nosso povo estava à beira do rio, não sentiu muito essa aproximação, mas foi terrível porque se instalaram no território e passaram a dizer que era deles. Começamos a sentir quando ficamos proibidos de pegar mangaba na floresta por causa das cercas. Foi aí que começamos a nos revoltar, porque limitaram nosso acesso à região”, critica Katu.
“Isso nos tirou muito da forma tradicional de viver porque meus pais não tiveram oportunidade de estudar nessa educação convencional da escola e como nossa forma tradicional de viver foi muito limitada, Seu Chão passou a trabalhar para esses engenhos e canavieiros. Foi lá que ele teve a primeira experiência com água ardente e ele acabou se tornando alcóolatra. Lembro que ia com ele receber o dinheiro do trabalho no final de semana e era aquela situação do coronelismo. Ele [o fazendeiro] dava o dinheiro e levava meu pai para o barraco dele para gastar o dinheiro lá. Seu Chão comprava umas galinhas vivas, a gente voltava com elas dependuradas, e algumas coisas que precisava para casa e um litro de cachaça, que ia tomando no caminho. Muitas vezes chegávamos com as galinhas mortas ou rochas, aí não prestava para comer. Então fui criado vendo meu pai ser suprimido por esse processo de avanço do agronegócio da cana de açúcar... isso foi muito ruim”, lamenta.
Os diferentes
Sem acesso livre à região de floresta para coleta frutas, as famílias passaram a ter que fazer compras na cidade. Nessa fase, Katu percebeu que havia um olhar pejorativo sobre a pessoas de origem indígena.
“As pessoas do centro de Goianinha e Canguaretama nos tinha como pessoas diferentes por sermos indígenas. Não nos aceitavam, lá éramos chamados de ‘katuzeiros’, que é um pejorativo para ‘bicho do mato’, aquele atrasado, que anda descalço. As pessoas passavam gritando isso. Na escola isso também foi muito ruim. Eu ia em cima de uma caminhonete e para mim, o melhor dia era quando estava chovendo porque botávamos uma lona em cima da cabeça e ninguém via a gente”, relembra.
“Muitos parentes queriam deixar de ser Katu por causa disso. Eu já tinha um ímpeto diferente, de querer lutar contra aquilo. Mudar o que as pessoas falavam. Dos cinco parentes que estudavam comigo, só eu consegui concluir”, lamenta Katu.
Cacique Luiz Catu é abordado após palestra na UFRN I Foto: Mirella Lopes |
Trabalho na infância
Luiz Katu começou a trabalhar ainda na infância para ajudar o pai. No período de colheita eles cortavam cana e, na entressafra, limpavam a mata na enxada e faziam a adubação para voltar a plantar depois.
“Quando ganhei mais corpo, comecei a ajudar ele. Nessa época já tinha três irmãos. Sofri muito nessa coisa de ter que ir para o canavial. Ele me botou numa escolinha que passou a ter na comunidade e era muito difícil conciliar a ajuda ao meu pai na cana e estudar. Essa situação me acompanhou por muito tempo. Tinha um período que eles chamavam de adubação. A gente pegava meio saco de 25 quilos de adubo químico, botava nas costas com um cano e saía correndo rápido porque se parasse, derrubava muito adubo num mesmo canto e, se isso acontecesse, estava desempregado, porque dava prejuízo ao dono do canavial. Fiz muito isso com Seu Chão. Isso era uma supressão ao nosso modo de vida, ao nosso direito de existir porque a cada dia eles aumentavam mais a área deles e limitava a nossa”, revela o Cacique.
Nesse período, por causa do cansaço, Katu foi reprovado três vezes na 1ª série do Ensino Primário da época.
“Passei quatro anos no 1º ano do Ensino Primário, acho que hoje é o Ensino Fundamental. Fui olhar uma ficha na escola e estava lá os quatro anos. Eles diziam que era muito rude e não iria aprender. Me passaram para o 2º ano porque já tinham preenchido a ficha [que só tinha espaço para quatro anos escolares]. Devem ter pensado, ‘vamos passar pra ver se ele desarna’”, conta Katu aos risos.
“Sentia muita dificuldade, além da timidez, que era terrível. Eu não tinha condições de chegar na escola como meus parentes, a questão da falta de alimentação era algo muito severo também, as escolas mal tinham merenda naquela época também, era uma ou duas vezes na semana, então ficava muito silenciado no cantinho. Cheguei a pensar que não aprenderia, mas minha mãe dava umas carreiras pra eu ir”, lembra rindo.
Aos trancos e barrancos, Luiz Katu concluiu os anos na escolinha da comunidade e, para seguir nos estudos, precisou passar para a escola que ficava no centro de Canguaretama, que ficava mais distante do canavial.
“Foram muitos problemas. Um deles foi quando pedi ao canavieiro, porque a gente ia naquelas caminhonetas abertas que levava para o canavial. Elas chegavam muito tarde e eu acabava perdendo o outro carro que levava a gente pro centro, para estudar. Fui falar com ele e perguntar se podia pedir ao motorista pra chegar mais cedo. Ele questionou como é que eu estava numa situação daquela, de cortar cana e querer estudar, tinha que escolher, ou uma coisa ou outra! Aí eu decidi a outra. Abandonei o trabalho, mas não 100% porque ainda precisava comprar material escolar, coisas extremamente necessárias. Então passei a fazer bicos, cortava cana e adubava quando precisava, mas não ia pra longe para não perder a escola”, explica o Cacique.
Estudantes durante palestra do Cacique Luiz Catu na UFRN I Foto: Mirella Lopes |
Foi durante as aulas na escola que Luiz Katu começou a ouvir que as comunidades indígenas não existiam mais. As afirmações estavam nos livros e eram repetidas pelos professores em sala.
“Meu pai dizia uma coisa e a escola afirmava outra, isso estava muito latente nos livros da época e eu comecei a contestar até nos anos 1990 para 2000, quando fui fazer o magistério. Foi quando me posicionei e comecei a dizer que nós existíamos e meu pai nunca havia negado isso. Foi quando me convidaram para ser professor na escola indígena onde estudei. Eu ainda estava no 1º ano do magistério, mesmo assim aceitei, topei o desafio”, conta com orgulho.
“Foi a partir daí que comecei a lutar, junto com outras lideranças, em defesa do território. Até então não tinha uma luta aberta em defesa dos direitos fundamentais e de cobrar demarcação. Foi a partir daí que o cacique Luiz Katu começou a nascer”.
Depois de uma audiência pública realizada em 2005, o Cacique passou a ser referência e solicitado para defender os direitos fundamentais dos povos indígenas.
“Meus familiares nunca negaram a própria origem, mas na própria aldeia havia um processo de apagamento muito forte. Muitos tinham medo de dizer quem eram e assumimos o compromisso de fazer essa luta de resistência”, revela Luiz Katu, que encabeçou a luta para legalização da primeira escola indígena do Rio Grande do Norte, instalada na aldeia Katu, em Canguaretama, no ano de 2008. A escola é bilingue, com o ensino de português e Tupi.
“Conseguimos alterar a grade curricular da escola, criar a disciplina de Etno-história, fiz a pesquisa de conteúdo, o material didático e fui o professor da disciplina, porque não tinha ninguém para assumir. Organizei com a diretora da escola na época para implantarmos o bilinguismo, com o Tupi. Conseguimos parcerias com instituições de fora para podermos aplicar o bilinguismo com o Tupi”, detalha.
Outra mudança foi na metodologia das aulas, com a participação de pessoas da comunidade e até sob a sombra de árvores.
“Comecei a dar aulas públicas, palestras embaixo do cajueiro, da mangueira, das árvores do pátio da escola”, conta. Luiz Katu possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA), em 2003. Atualmente é professor da Escola Municipal Indígena João Lino da Silva e Escola Municipal Indígena Alfredo Lima na aldeia Katu, nos municípios de Goianinha/Canguaretama. Luiz Katu é uma liderança indígena potiguar de forte atuação, e encabeçou a luta pela implantação de uma escola indígena na comunidade de Canguaretama.
Atualmente, além das unidades no território Katu, há escolas indígenas no território Mendonça, em João Câmara, na Tapará, em São Gonçalo do Amarante, e há processos de instalação em outras regiões.
A população indígena do Rio Grande do Norte está distribuída entre 121 municípios, segundo o Censo realizado em 2022 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Nove cidades concentraram cerca de 80% de toda população indígena residente no estado, estando a maioria em João Câmara (20,6%), Natal (15,3%), Macaíba (10,1%), Ceará Mirim (9,1%), Canguaretama (6,3%), Apodi (6,2%), Baía Formosa (4,8 %), Goianinha (4,4%) e São Gonçalo do Amarante (3,5%).
Luiz Katu, cacique indígena I Foto: acervo pessoal |
Festejos
Luiz Katu também encabeçou o resgate das comemorações tradicionais que estavam sendo esquecidas, como a Festa de Todos os Santos.
“Era uma festa feita em todo 1º de novembro por um avô de criação da minha mãe, Seu Chico Nenê, desde a década de 1970. Mas, depois que ele faleceu na década de 1990, ele ficou adormecida, ficou só a parte religiosa. Chamei uns parentes nos anos 2000 para recuperarmos nosso festejo tradicional e fortalecer a lavoura indígena, que é o plantio da batata. A Festa de Todos os Santo se tornou a Festa da Batata, que desde 2002 é a maior e mais tradicional festa indígena do Rio Grande do Norte. Conseguimos dar visibilidade chamando as pessoas a conhecerem nossa cultura e tudo isso estava atrelado à educação. As escolas se preparam com exposições para participar da Festa da Batata”, comemora.
O fator X
Atualmente, o Cacique Luiz Katu é professor da disciplina de Etno-história, coordena um trabalho de Assuntos Indígenas em Goianinha e segue como ativista e fazendo palestras sobre a história e defesa das comunidades indígenas. Na apresentação que assisti na UFRN, ele foi aplaudido de pé por estudantes, professores e pesquisadores interessados no tema.
“Se não houvesse o entendimento de que a minha origem foi fundamental para me fortalecer, não teria sido possível mudar essa história”, diz Katu, se referindo aos anos de reprovação e falta de perspectiva de vida.
“Esse olhar é fundamental. Precisamos recusar o avanço do agronegócio da cana de açúcar para defender o território, a Mata Ciliar e a Mata Atlântica que ali está. Essa é uma luta nossa incansável. É esse ativismo que permite chegar a lugares como esse, na universidade”, reconhece Luiz Katu.
Texto e Fotos: Mirella Lopes
Matéria publicada originalmente pelo site jornalístico Saiba Mais
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