Essa, entretanto, não é a concepção de educação preponderante no Brasil. Ainda hoje, passados mais de 50 anos da publicação da Pedagogia do oprimido, é a chamada, na expressão do autor, de concepção bancária da educação que predomina nas políticas oficiais. Seu principal exemplo aparece no documento conhecido como Base Nacional Comum Curricular (BNCC), baseado na pedagogia das competências e que, para Lisete, é sinônimo de currículo único.
A ideia de educação bancária parte da metáfora do depósito. Nela, o conteúdo deve ser ensinado independentemente das circunstâncias. Como o próprio Paulo Freire escreve, “O educador aparece como seu indiscutível agente, como seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação”. O educador se torna, portanto, mero depositante. Os educandos, depositários.
Lisete exemplifica como se manifesta a educação bancária.“Estamos em uma pandemia com quase 600 mil mortos, temos 18 milhões de desempregados e metade da população em estado de insegurança alimentar. Tudo isso é deixado de lado porque o que interessa é fazer a transmissão do conteúdo preparado, supostamente dentro dos ‘guias curriculares’ ou propostas curriculares oficiais. Não interessa nem as circunstâncias e muito menos se o aluno propriamente aprendeu. Aprender é um problema dele: ele que faça um esforço e aprenda. Eu desempenho minha função, que é transmitir o conteúdo”.
Na educação bancária, o educando é um objeto passivo. A autoridade do conhecimento é o professor, que sabe mais e portanto não precisa prestar atenção no estudante. Cabe ao professor definir a disciplina, o conteúdo, a avaliação e até mesmo o jeito do estudante se comportar. Para este, a função é prestar atenção no professor, a “autoridade” que sabe mais.
A essa concepção, Paulo Freire contrapõe a convicção epistemológica de que é o diálogo que garante a aprendizagem. Para ele, ninguém ensina ninguém e ninguém aprende sozinho: as pessoas aprendem em comunhão. Tanto na escola quanto em qualquer outro espaço de atuação – sindicatos, igrejas, grupos de amigos, times de futebol – o ato educativo surge na prática concreta com o coletivo. Para que isso se efetive, por sua vez, alguns pressupostos são necessários.
O primeiro é a aceitação de que todos somos iguais. Já o segundo, que todos temos direitos iguais. Lisete destaca, contudo, que a aparente simplicidade da aplicação desses pressupostos é ilusória. “Quem seria contra o direito à educação? Entretanto, mesmo para você falar isso com certeza, Paulo Freire diz, todo dia é uma opção política admitir que todos têm o direito à educação e todos têm o direito de aprender”. É só nessa horizontalidade que o diálogo freiriano pode se dar e, dessa forma, instalar processos de conscientização e curiosidade fundamentais para o ser mais.
Dessa opção pelo diálogo surgem posturas como a oposição de Freire aos materiais pré-fabricados, como apostilas produzidas por empresas privadas, que uniformizam os currículos, limitam a autonomia escolar e cerceiam o diálogo. Para o educador, cada grupo social tem suas características e particularidades e, no processo de aprendizado, não se pode definir tudo previamente. Aí entram práticas como os estudos do meio, uma abordagem anterior a Paulo Freire, mas resgatada por ele, no qual os currículos escolares são montados a partir da ida às comunidades. “É o conhecimento da comunidade que dá condições para que eu saiba quem são meus alunos”, frisa Lisete.
Isso não significa, Lisete faz questão de lembrar, que Freire acreditava em um ensino sem conteúdos. Conforme conta a professora, que conheceu de perto suas ideias e seu trabalho quando fez parte da equipe de Freire na Secretaria Municipal de Educação, o educador defendia que os professores tenham sólida formação teórica, científica, artística e literária, para poder lidar com a diversidade de interesses dos estudantes. E, além disso, o diálogo proposto por Freire não deixava de lado o planejamento das aulas. Justamente o contrário: é a robusta bagagem dos professores, somada ao planejamento cuidadoso das atividades, que permite ao professor as bases do diálogo no processo educativo.
No cerne da defesa da autonomia escolar está também a constatação de que não é o professor isolado que garante a qualidade da escola: é preciso um grupo de profissionais empenhados em uma proposta de sociedade, com uma concepção sobre o tipo de jovem que desejam formar. “Isso significa o direito, mas também o dever, de cada escola pública elaborar o que Freire chamava de projeto político-pedagógico”, explica Lisete, frisando que o político da expressão é central aqui. “O projeto de escola não é um projeto simplesmente de conteúdo – e quem fala isso sabe que está mentindo. Um projeto pedagógico será sempre político-pedagógico, porque significa o investimento que acreditamos dever ser feito sobre as crianças, jovens e adultos: um homem e uma mulher que se interessem ou não pela situação concreta do mundo. É isso que tornará uma escola libertadora”.
Mural ilustrado com desenho de Paulo Freire – Foto: Nefandisimo/Wikimedia Commons
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